ASTREINTES FIXADAS EM AÇÃO TRABALHISTA NÃO TÊM PRIVILÉGIO EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL

22 de outubro de 2020 - Direito Civil

(Leonardo Matos)

As astreintes – uma espécie de multa devida pela demora no cumprimento de ordem judicial – não possuem natureza de verba alimentar, ainda que provenientes de uma ação trabalhista, sendo classificadas como crédito quirografário para fins de falência e recuperação judicial.

Esse foi o entendimento adotado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ, ao julgar recentemente um recurso especial de uma empresa em recuperação judicial.

Em um processo de recuperação judicial ou falimentar, além da separação dos créditos em extraconcursais (art. 84, Lei n. 11.101/2005)[i] e concursais, estes últimos são divididos em classes, de acordo a sua natureza.

Os créditos concursais estão elencados no art. 83 da Lei n. 11.101/2005[ii], que estabelece uma ordem preferencial para os seus pagamentos. Na ordem estabelecida pelo referido dispositivo, os créditos trabalhistas gozam de preferência em relação a diversos outros tipos de crédito, em razão do seu caráter alimentar.

Os créditos classificados como quirografários, em contrapartida, são aqueles desprovidos de qualquer tipo de garantia ou privilégio, ocupando um dos últimos lugares na ordem de preferência para pagamento.

No caso julgado, um credor trabalhista havia formulado pedido para ter o seu crédito, no valor de R$ 2.086.005,88 (dois milhões, oitenta e seis mil reais, cinco reais e oitenta e oito centavos), habilitado como crédito trabalhista.

No entanto, concordando com a visão do administrador judicial e da empresa recuperanda, o magistrado deferiu a habilitação da importância de apenas R$ 43.023,42 (quarenta e três mil, vinte e três reais e quarenta e dois centavos) na qualidade de crédito trabalhista e do saldo de R$ 2.010.000,00 (dois milhões e dez mil reais) como crédito quirografário, porquanto este referia-se às astreintes fixadas no processo trabalhista promovido pelo credor.

Ao julgar o recurso do credor, o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a decisão, reconhecendo que o valor do crédito, em sua integralidade, deveria ser considerado como crédito trabalhista, por se tratar de uma indenização devida ao trabalhador.

A empresa em recuperação recorreu ao STJ alegando, em suma, a existência de dissídio jurisprudencial, pois outros tribunais, ao julgarem casos semelhantes, haviam reconhecido que as astreintes não tinham natureza de crédito trabalhista, ainda que derivadas de uma ação trabalhista.

Cumprindo o seu papel de uniformizar a interpretação da lei federal no país, o STJ, através de um voto da lavra do Ministro Relator, Marco Aurélio Bellizze, acompanhado à unanimidade pelos demais membros da sua Terceira Turma, reestabeleceu a decisão de primeiro grau.

Dentre as razões expostas em seu voto, o ministro ponderou que as astreintes possuem um caráter coercitivo e intimidatório, com a finalidade de compelir a parte a cumprir o comando judicial, tratando-se de uma técnica executiva de viés puramente instrumental, acrescentando que, caso a parte ainda assim descumpra a ordem, a multa assume um viés sancionatório.

Assim, ao contrário do entendimento adotado pela corte estadual, as astreintes não têm a função de indenizar o trabalhador, como ocorre com as indenizações que derivam da lei, de acordos coletivos ou do próprio contrato de trabalho (como aquelas relacionadas à exposição do trabalhador a uma situação de risco ou de dano no exercício de sua atividade laboral), classificadas como créditos trabalhistas.

O ministro também ponderou que o privilégio atribuído às verbas trabalhistas se dá em razão do seu caráter alimentar, inexistente no que diz respeito à penalidade processual imposta pela justiça especializada, por não ter relação direta com o labor.

Além disso, ressaltou que uma interpretação extensiva demais quanto ao que deve compreender por crédito trabalhista poderia resultar em um desequilíbrio no processo concursal de credores, inclusive em detrimento dos demais credores da própria classe trabalhista, o que é vedado pela Lei de Falências e Recuperação Judicial.

O julgado contou com a seguinte ementa:

“RECURSO ESPECIAL. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO. PRETENSÃO DE HABILITAR CRÉDITO DECORRENTE DE MULTA PROCESSUAL (ASTREINTES) APLICADA PELO JUÍZO TRABALHISTA, NA CLASSE TRABALHISTA. DESCABIMENTO. CARÁTER COERCITIVO E INTIMIDATÓRIO (TÉCNICA EXECUTIVA, INSTRUMENTAL). SANÇÃO PECUNIÁRIA PROCESSUAL. VIÉS INDENIZATÓRIO OU ALIMENTAR INEXISTENTES, SEM NENHUMA RELAÇÃO, NEM SEQUER REFLEXA, COM O VÍNCULO EMPREGATÍCIO.

REFORMA. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO.

1. A controvérsia posta no presente recurso especial centra-se em saber se o crédito decorrente das astreintes, aplicadas no bojo de processo trabalhista, em razão de descumprimento de ordem emanada pelo Juízo trabalhista, deve ser habilitado na recuperação judicial na classe dos créditos trabalhistas, como compreendeu o Tribunal de origem, ou na dos quirografários, como defende a recuperanda, ora recorrente.

2. As astreintes possuem o propósito especifico de coagir a parte a cumprir determinada obrigação imposta pelo juízo ? em tutelas provisórias e específicas ou mesmo na sentença ?, incutindo, em seu psicológico, o temor de sofrer sanção pecuniária decorrente de eventual inadimplemento, do que ressai, indiscutivelmente, seu caráter coercitivo e intimidatório. Trata-se, pois, de técnica executiva, de viés puramente instrumental, destinada a instar a parte a cumprir, voluntariamente (ainda que sem espontaneidade), a obrigação judicial, tal como lhe foi imposta.

2.1 Na hipótese de a técnica executiva em comento mostrar-se inócua, incapaz de superar a renitência do devedor em cumprir com a obrigação judicial, a multa assume claro viés sancionatório.

Trata-se, nesse caso, de penalidade processual imposta à parte, sem nenhuma finalidade ressarcitória pelos prejuízos eventualmente percebidos pela parte adversa em razão do descumprimento da determinação judicial ou correlação com a prestação, em si, não realizada.

3. O fato de a multa processual ter sido imposta no bojo de uma reclamação trabalhista não faz com que esta adira ao direito material ali pretendido, confundindo-se com as retribuições trabalhistas de origem remuneratória e indenizatória. Primeiro, porque a obrigação judicial inadimplida, ensejadora da imposição de sanção pecuniária, não se confunde, necessariamente, com o direito ao final reconhecido na reclamação trabalhista. Segundo e principalmente, porquanto a sanção pecuniária imposta em razão do descumprimento da obrigação judicial ? estabelecida em tutelas provisórias e específicas ou mesmo na sentença ?, de natureza processual, não possui nenhum conteúdo alimentar, que é, justamente, o critério justificador do privilégio legal dado às retribuições trabalhistas de origens remuneratória e indenizatória. Não se pode conferir tratamento assemelhado a realidades tão díspares.

4. O crédito trabalhista tem como substrato e fato gerador o desempenho da atividade laboral pelo trabalhador, no bojo da relação empregatícia, destinado a propiciar a sua subsistência, do que emerge seu caráter alimentar. As astreintes, fixadas no âmbito de uma reclamação trabalhista (concebidas como sanção pecuniária de natureza processual), não possuem origem, nem sequer indireta, no desempenho da atividade laboral do trabalhador.

4.1 As retribuições de natureza indenizatória, que compõem o crédito trabalhista, decorrem da exposição do trabalhador a uma situação de risco ou de dano, no exercício de sua atividade laboral, definidas em lei, acordos coletivos ou no próprio contrato de trabalho. A multa processual em comento, sob qualquer aspecto, não se insere em tal circunstância, a toda evidência.

5. A interpretação demasiadamente alargada à noção de “crédito trabalhista”, conferida pela Corte estadual, a pretexto de beneficiar determinado trabalhador, promove, em última análise, indesejado desequilíbrio no processo concursal de credores, sobretudo na classe dos trabalhistas, em manifesta violação ao princípio da par conditio creditorum.

6. Recurso provido.”[iii]

Em conclusão, tem-se que o crédito referente às astreintes fixadas em uma reclamação trabalhista não possuem natureza de crédito trabalhista, devendo ser tratado como crédito quirografário para os fins dos processos falimentares e de recuperação judicial.


[i] Art. 84. Serão considerados créditos extraconcursais e serão pagos com precedência sobre os mencionados no art. 83 desta Lei, na ordem a seguir, os relativos a:

I – remunerações devidas ao administrador judicial e seus auxiliares, e créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho relativos a serviços prestados após a decretação da falência;

II – quantias fornecidas à massa pelos credores;

III – despesas com arrecadação, administração, realização do ativo e distribuição do seu produto, bem como custas do processo de falência;

IV – custas judiciais relativas às ações e execuções em que a massa falida tenha sido vencida;

V – obrigações resultantes de atos jurídicos válidos praticados durante a recuperação judicial, nos termos do art. 67 desta Lei, ou após a decretação da falência, e tributos relativos a fatos geradores ocorridos após a decretação da falência, respeitada a ordem estabelecida no art. 83 desta Lei.

[ii] Art. 83. A classificação dos créditos na falência obedece à seguinte ordem:

I – os créditos derivados da legislação do trabalho, limitados a 150 (cento e cinqüenta) salários-mínimos por credor, e os decorrentes de acidentes de trabalho;

II – créditos com garantia real até o limite do valor do bem gravado;

III – créditos tributários, independentemente da sua natureza e tempo de constituição, excetuadas as multas tributárias;

IV – créditos com privilégio especial, a saber:

a) os previstos no art. 964 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;

c) aqueles a cujos titulares a lei confira o direito de retenção sobre a coisa dada em garantia;

d) aqueles em favor dos microempreendedores individuais e das microempresas e empresas de pequeno porte de que trata a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006;

V – créditos com privilégio geral, a saber:

a) os previstos no art. 965 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002;

b) os previstos no parágrafo único do art. 67 desta Lei;

c) os assim definidos em outras leis civis e comerciais, salvo disposição contrária desta Lei;

VI – créditos quirografários, a saber:

a) aqueles não previstos nos demais incisos deste artigo;

b) os saldos dos créditos não cobertos pelo produto da alienação dos bens vinculados ao seu pagamento;

c) os saldos dos créditos derivados da legislação do trabalho que excederem o limite estabelecido no inciso I do caput deste artigo;

VII – as multas contratuais e as penas pecuniárias por infração das leis penais ou administrativas, inclusive as multas tributárias;

VIII – créditos subordinados, a saber:

a) os assim previstos em lei ou em contrato;

b) os créditos dos sócios e dos administradores sem vínculo empregatício.”

[iii] REsp 1804563/SP, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 25/08/2020, DJe 31/08/2020.