COMPETÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO PARA INVALIDAR CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM: CORRENTE JURISPRUDENCIAL DO STJ EM CASOS DE “CLÁUSULAS PATOLÓGICAS”

25 de agosto de 2020 - Direito Civil

(Murilo Varasquim)

A arbitragem é um dos métodos alternativos de resolução dos conflitos. Dada a carga oceânica de lides e procedimentos que são enfrentados diuturnamente pelos magistrados[1], o próprio Conselho Nacional de Justiça estimula as partes a adotarem essa alternativa quando possível.[2]

Ademais porque “a atividade arbitral possui natureza jurisdicional, o árbitro atua como juiz de fato e de direito, aplicando o direito à espécie, com o escopo de solucionar controvérsia jurídica.”[3]

Portanto, nos casos admitidos pela Lei nº. 9.307/1996[4], e quando as partes assim o convencionarem, quem irá decidir a disputa é um árbitro e não um juiz togado.

Ocorre que alguns contratantes têm se valido do instituto para impedir o acesso à Justiça, principalmente quando a parte contrária é ‘hipossuficiente’.

A regra do parágrafo único do art. 8º da Lei 9.307/1998[5] e o princípio da kompetenz-kompetenz[6] vedam a atuação da justiça estatal para deliberar sobre a validade da convenção de arbitragem e sobre a competência do árbitro.

A partir de tais regras, e sem desconhecer que geralmente procedimentos arbitrais são muito dispendiosos, algumas partes impõem ou mascaram a convenção de arbitragem, premeditando o inadimplemento e cientes de que a parte inocente não conseguirá provocar as autoridades, a saber:

– as estatais, em decorrência do parágrafo único do art. 8º e do kompetenz-kompetenz; e

– as arbitrais, em virtude de não dispor dos recursos para instaurar o procedimento.

Fica, assim, o próprio direito material sem a devida proteção.

Por ter em mente tal circunstância e outras, o Superior Tribunal de Justiça, nos últimos anos, vem modificando a sua jurisprudência[7] diante de convenção claramente ilegal ou visivelmente patológica, admitindo excepcionalmente a interferência do Poder Judiciário não obstante a convenção de arbitragem.

Por ocasião do REsp 1845737/MG, a Terceira Turma do STJ decidiu que: “cabe ao Poder Judiciário, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral ‘patológico’, i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula.”[8]

A hipótese sob análise era de contrato de adesão em que o aderente não tinha tomado a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura especialmente para essa cláusula, ao arrepio do § 2º do art. 4º da Lei nº. 9.307/1996.

A Corte Superior, a propósito, abriu a possibilidade para a aplicação desse entendimento para além dos litígios relacionados a contrato de adesão.

Por fim, salienta-se que a modificação/abrandamento da interpretação da regra legal/da jurisprudência do STJ, aqui apontada, foi reconhecida pela Ministra Nancy Andrighi ao relatar e julgar o REsp 1602076/SP[9]. Vejamos:

“No MC 14.295/SP (DJe 13.06.2008), decidi no mesmo sentido, afastando a competência do Poder Judiciário nas fases iniciais do procedimento de arbitragem, com a aplicação estrita do princípio kompetenz-kompetenz”(…)

Desde então, a jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça mostrou algum abrandamento com o mencionado princípio. (…)

Essa modulação do princípio competência-competência foi notada pela doutrina jurídica, a qual comenta sobre a hipótese de análise de nulidades identificadas prima facie pelo Poder Judiciário (…)

Além disso, devemos mencionar que o princípio da kompetenz-kompetenz também foi revisto na Alemanha, que é apontada como a origem do princípio da autonomia da cláusula compromissória e o da competência do tribunal arbitral para decidir sobre sua própria competência. Essa revisão foi feita pelo Bundesgerichthof – BGH, equivalente alemão a este Superior Tribunal de Justiça”.


[1] AZEVEDO, Álvaro Villaça. Arbitragem. R. CEJ, Brasília, n. 24, p. 67-74, jan./mar. 2004. Destaques nossos.

[2]Disponível em: https://www.cnj.jus.br/estimulo-a-metodos-alternativos-de-solucao-de-conflitos-esta-na-cf88/. Acesso em: 16.08.2020.

[3] ABBOUD, Georges. Jurisdição Constitucional VS. Arbitragem: Os Reflexos do Efeito Vinculante na Atividade do Árbitro. In Revista de Processo, vol. 214 (Editora Revista dos Tribunais): 2012. p. 271. Destaques nossos.

[4] “Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”

[5] “Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.”

[6] “Poder do árbitro de decidir sobre a sua própria competência”(STJ, MC 14.295/SP, DJe  13.06.2008).

[7]  “A previsão contratual de convenção de arbitragem enseja o reconhecimento da competência do Juízo arbitral para decidir com primazia sobre o Poder Judiciário, de ofício ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória. (…) A prioridade da competência arbitral não pode ser afastada pela presunção de que não houve concordância expressa de uma das partes, pelo simples fato de o contrato ser de adesão, ainda mais quando observada a isonomia dos contratantes.” (AgInt nos EDcl no AREsp 975.050/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/10/2017, DJe 24/10/2017. Destaques nossos).

[8] REsp 1845737/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/02/2020, DJe 26/02/2020. Destaques nossos.

[9] REsp 1602076/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/09/2016, DJe 30/09/2016. Destaques nossos.